Crônica no “Jornal do Brasil”, em abril de 1977: “Se eu fosse consultado”
Jornal do Brasil
Se eu fosse consultado
(Quinta-feira, 14 de abril de 1977)
Carlos Drummond de Andrade
Se me dessem a honra de ouvir-me sobre as reformas políticas, eu recomendaria uma ideia bem mais revolucionárias do que as da própria Revolução. E muito mais salutar: a eleição integral, em que todos os brasileiros, mas todos, sem exceção das crianças, hoje tão sabidas, escolhessem seus representantes e dirigente, sob a forma de voto mental absoluto, sem papagaiadas formalísticas.
Os mandatos teriam a duração exemplar de 24 horas, o que eliminaria angústias e infartos, e poderiam ser, não digo cassados, pois julgo a expressão extremamente antipática, mas revogados, caso no fluir dos minutos o eleitor achasse que fizera má escolha. Em compensação, poderiam ser renovados na manhã seguinte e nas outras manhãs, sempre que o eleitor se mantivesse contente com os mandatários e não quisesse experimentar outros. Desta maneira teríamos a cada sol, ou a cada dia de chuva, governo e representação popular novos, que, se fossem ótimos, poderiam ser confirmados quando o galo cantasse outra vez (o galo ou a serraria do bairro), e, caso não dessem no couro, teriam feito o menor mal possível à mente do seu eleitor.
Já sei que impugnariam o meu projeto, apontando-lhe mil inconvenientes, entre os quais o de provocar a anarquia governamental e legislativa, pois não haveria um só presidente, e sim talvez milhões, dada a tendência de muito eleitor a votar em si mesmo, o que se repetiria para a eleição para governadores, senadores, deputados, prefeitos e vereadores. Podendo até dar-se o caso de um mesmo indivíduo eleger-se simultaneamente para todas essas funções. Como governar, como elaborar leis desta maneira?
Bem, eu já previa esta objeção principal, como tantas outras, e afirmo que a explanação da ideia fará com que ela rutile em seu justo e convincente esplendor. Os órgãos políticos assim constituídos não trariam a menor perturbação à vida do país. Pelo contrário, só poderiam ofertar-lhe benefícios, pela soma de boas influências de cada eleito, no ânimo de seu respectivo eleitor. A democracia funcionando dentro de nós, com eficácia, e não supostamente do lado de fora, sujeita a esbarrões e desvios. Nisso consiste a beleza do meu sistema.
Eu, por exemplo, me daria o prazer, ou o privilégio, de ser governado em 1° de janeiro por mestre Alceu Amoroso Lima. Para renovação da alegria, meu presidente no dia 2 seria Maria Clara Machado (Que diabo, então mulher inteligente não pode assumir o posto?) Depois seria a vez de César Lates, Vinícius de Moraes, Paulo Duarte, Prudente de Morais, neto, essa folha-de-malva que se chama Henriqueta Lisboa, Aliomar Baleeiro, Luis da Camara Cascudo, Fayga Ostrower, Pedro Nava, Francisco Mignone, Enrico Bianco, Eliseth Cardoso, Orígenes Lessa, Fernanda Montenegro … Tudo gente boa, de respeito. E de imaginação. Estes, e outros assim, os meus presidentes ao longo do ano. Meus vizinhos escolheriam os deles.
Ninguém brigando por motivo de ambição. Em santa paz, cada qual seria governado, orientado, instigado pela figura de sua dileção. Por serem de jurisdição limitada ao âmbito das pessoas que os elegessem, não colidiriam entre si tantos presidentes, situados na extensão infinita ( e mínima) de nossas preferências pessoais. Todos nós, eleitores, nos sentiríamos impelidos, na esfera individual, a fazer o melhor possível, sob esse comando abstrato. E vivendo e trabalhando cada um de nós ao influxo de tal regência moral, este seria um país que não precisaria criar calos nos pé e na alma para ir pra frente.
Bem, insistirão ainda os opositores: E quem governaria de fato o Brasil, quem faria leis para serem realmente executadas? Ora, pergunta vã. Se na prática tais poderes podem ser concentrados numa só pessoa, minha proposta consiste apenas em estender esta faculdade, no plano ideal, que também conta, a todos os integrantes da comunidade. Sem bulha nem ameaça à segurança nacional, e com plena consciência de todo mundo.